quinta-feira, 22 de setembro de 2011

RECLAMES DE UM POBRE VELHO

Eu sou carta e construção
Fumaça que se desfaz
Gelo no vulcão em erupção
Vento na parede, lágrima na boca que bebe
O baralho reunido e ás de copa sob as botas
O som que não chegou aos ouvidos deu lugar ao zumbido
Eu olho pra o mar e seco em gota só sob o sol alto
Sinto o vento de fora e ele é frio
O fora é meu lugar, enfim tenho casa
Sou folha que arrastada pelo vento enxerga de longe a árvore dançar

Minha raiz ficou e eu fui
Estou indo solto e sem alimento e a seca bebendo toda água que tenho
Riso enferrujado, cor sem tinta e silencio enforcador

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

CHUVA DE OUTRORA

Aqui vai uma crônica do gigante cronista Milton Dias. Cearense de Ipu. Não é tempo de chuva, mas revivi meus banhos na periferia (representante do interior na cidade) de Fortaleza lendo a crônica sempre inspirada do Milton Dias e tenho o prazer de sugerir sua leitura, se deliciem, quem for nordestino sabe bem o cenário mágico que achuva cria.

"Se a crônica é um gênero literário que no Brasil adquiriu foros de literatura maior, exercido por grandes nomes, de Machado de Assis a Ruben Braga, não houve quem a cultivasse com mais competência no exato limite de sua graça e finura, na medida perfeita de sua irreverência e de sua emoção do que Milton Dias" Jorge Amado



Eu acredito muito no nosso profeta Roque Macedo, mas estou pedindo a Deus que ele se tenha enganado, pela primeira vez que aquela previsão de chuva até setembro, não passe duma traição que o suor do sovaco do peba lhe tenha feito. Apesar de ser perdido por água, como todo bom cearense, apesar de não negar que poucas coisa me alegram tanto o coração como o nascente anunciando chuva, o tempo se encapuzando, o sol ausente, a temperatuta caindo, o mundo se molhando e a terra preparando o ventre para o milagre da fecundação.

Antigamnete era assim, nos tempos d'eu menino, no sertão: a chuva vinha sempre à tarde, tinha um prefácio, cumpria todo um ritual, as nuvens se formavam lentamente, se juntavam, se avolumavam como exército que se arregimenta e parte depois para o ataque. Tinha-se direita a trovão e a relâmpago, às vezes até a perigo de algum raio, como aquele que caiu na casa do meu avô - e respeitou todas as pessoas, quebrou o espelho grande do "toilette" antigo, cortou a cruz do alto do oratório, derrubou uma porta e imolou um bezerro, no quintal. O que foi considerado um milagre, porque todos ali eram de muita oraçãoe de muito temor a Deus.

E as gentes também se preparavam, punham os potes em posição de espera, debaixo das bicas, e os candidatos ao banho metiam o calção, feito de velhas calças cumpridas com as pernas cortadas à altura do joelho.
Chega a primeira mão de chuva, não se corre logo ao banho - havia que esperar, prudentemente, que as telhas esfriassem, limpassem. Só então se ia receber na cabeça, como renovação do batismo, o impacto líquido que os jacarés de fladres mandavam de cima dos parapeitos e dos beirais mais altos, a boca aberta de dentes em forma de serras pontiagudas. Vomitando violantamente a água que estalava em baixo barulhenta e copiosa.

Depois, no meio da rua, ia-se receber no corpo, já tremendo de frio, a chicotada das bétegas - e em seguida a batalha de areia começava. Muito frequentemente, no final, corria-se ao rio próximo, a desafiar a correnteza, pulando dos tranpolins naturais, feitos de galhos de cajazeiras que pareciam plantadas a propósito na beira dos rios.
Do lado da praça do mercado, pelos quarteirões do comércio, quando começava a chover, saíam das bodegas gritos de alegria que a pinga insinuava - e dentro de alguns minutos, a cidade inteira saia a festejar o tempo - homens e crianças disputando as bicas melhores, as mais conhecidas, como aquela da loja do Seu Zécarneiro ou a da casa do Seu Guilherme, que eram famosas.   

As mulheres não vinham a rua: pudicamente se limitavam aos banhos nos terraços internos - e muitas delas, por entre as janelas entreabertas, de olhar esperto e curioso, testemunhavam a alegria dos banhistas entre palavrórios e gargalhadas, tão próximo da alegria com que os homens primitivos acolhiam a mensagem do deus das águas, que reverenciavam e agradeciam em oração.

Terminada a chuva, a tarde se fazia muito azul, lavada, repousante e bela como as tardes que vinham nas reproduções das folhinhas de parede. Era o tempo que sino, pastor zeloso do comportado rebanho, chamava as ovelhas de Deus para a benção, o cura assumia o altar, as moças, vestidas de branco, subiam ao coro da igreja e, acompanhadas pela minha tia Abigail ao harmônico, cantavam o Tantum Ergo.

A noite caia quase de repente, um frio bom, seco e constante recolhia o povo. De dentro das casas grandes saíam as notas que os pianos derramavam através das venesianas - e velhas valsas bailavam solitárias na pracinha, contando estórias de amor que foi e não voltou. Assim como as águas dos jacarés que não voltam nunca. E os casais com diploma de casamente passado na igreja, cumpriam a determinação bíblica da multiplicação da espécie.

Os moços trêfegos, indóceis, corriam para as mulheres perdidas, atravessavam as poças do caminho, o trilho do trem - e o quarteirão das madalenas se iluminavam com as luz mortiça de parcas lâmpadas (versão humilde dos lampiões das grandes cidades) as portas se abriam com convites, para o gesto eterno, universal de acolhimento das degradadas, degradadas filhas de Eva. Que também eram filhas de Deus. Enquanto a cidade preconceituosa fingia ignorar que os meninos de boa família estavam em transa com as cunhãs.

Debaixo das sacadas senhoriais, havia sempre algum menestrel intrépido, tirando um pouco sobre o melancólico, infrentando a incerteza do tempo, cantando desventuras e esperanças à janela das moças casadouras, na melhor linha medieval. E as cordas dos violões soluçavam penas de amor e o silencio ampliava a voz do seresteiro, que morria depois pelos becos sombrios.

Chico, o poeta municipal, guardador da noite, habitava sozinho o mistério das ruas desertas, as pontas de rua, dizendo em alta voz, versos que lembravam Augustos dos Anjos, baladas que falavam das tristezas em que naufragara a alma sofrida, tresmalhada. Era tranquilo e bom como os boêmios verdadeiros, como as pombinhas mansas do outro poeta.

As vozes da noite silenciavam nas dobras da madrugada e a gente toda, de rede branca armada, sonhava sonhos desambiciosos, no aconchego de alvos lençois que cheiravam a jasmins e a pureza.
É isto aí: ficou claro que sou perdido por tempo de chuva, que me devolve ao meu antigamente morto, transformado em patrimônio de lembraças. Mas chuvas em termos, meu profeta Roque. Chuva até setembro, não. Ah, não é direito.

terça-feira, 6 de setembro de 2011

POSSÍVEL DESFECHO DE UM LIVRO EM GESTAÇÃO

A mão quente e enrugada que não vou segurar quando o céu vermelho se pinta e o sol se esconde no infinito... As risadas das crianças correndo na sala que não irei ouvir... As histórias que não irei lhes contar... Os filhos que não irei abraçar... Os cheiros que não irei sentir... As dores que não chegarão... As alegrias que não me farão saltar... Os medos que não me farão tremer... O colo onde não repousarei...  As músicas que não encontrarão melodia... Os dias que se despedirão sem as vozes que geraria... As flores que não encontrarão tua respiração...  As pegadas que não serão marcadas na areia da praia...
Os pássaros que não terão espectadores apaixonados... As águas que não dançaram com nossos corpos... Os caminhos se sentirão sozinhos... Os olhares se perderão em outros... Minha voz não sonorizará teus ouvidos... A lua não mais me olhará...

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

RUA

O olho da rua me vê com seus olhos vermelhos
E me convida pra dançar agarrado com o vento

A poeira que lhe instiga e irrita
O vento que sopra sobre as fitas
O menino que corre atrás da raia

A rua é espectadora do moribundo, do vagabundo
Do mundo é a própria porta
Ferrolhos que se entortam e permitem a entrada de todos
É palco dos horrores e dos amores
Silenciosa moça parada, esperando e se despedindo
Dos que por ela passam

Morrendo com os que morrem
Vivendo com os que vivem
Dançando com os que dançam

Correndo com os que correm
Chorando com os que choram
Cantando com os que cantam
Seguindo por dentro dela a rua roendo as velas
Que se gastam rumo aos destinos